A experiência de longos 20 anos de trabalho na advocacia me impediriam de tecer qualquer comentário acerca da última decisão do STF acerca da coisa julgada em matéria tributária sem, antes, ler a íntegra do julgado. Mas diante de tantas notícias desencontradas, e ciente de que os empresários são os maiores prejudicados com a insegurança instaurada a partir das decisões, ousarei tecer alguns comentários que retratam meu ponto de vista sobre o que foi julgado e o que tem sido noticiado na imprensa, ciente de que voltarei a tratar do tema após ter acesso à decisão, que ainda não foi publicada.
Foram julgados dois Recursos Extraordinários: RE 955227, rel Min. Roberto Barroso (Tema 885) e RE 949.297, relator ministro Fachin (Tema 881), resultando na seguinte tese:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.
Antes de tudo, necessário registrar que o Supremo, no referido julgamento, tratou de forma diferenciada as relações tributárias instantâneas (aquelas que ocorrem em uma única oportunidade, como o pagamento do ITBI, por exemplo) das relações continuadas (aquelas de trato sucessivo, que se repetem mês a mês, ano a ano), resguardando a eficácia da coisa julgada em ambos os casos em relação às decisões proferidas em controle incidental antes de 2006, ano em que foi instituída a sistemática da repercussão geral, através da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, e sua regulamentação pela Lei n. 11.418/2006. Para esses casos, seria necessário o ingresso de ação rescisória para desconstituir a coisa julgada.
Na sequência, entendeu-se que as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas relações de trato sucessivo, ou seja, a partir do momento em que o STF declara a constitucionalidade do tributo, essa decisão passa a valer para todos automaticamente (sem a necessidade da propositura de ação rescisória), mesmo para aqueles que tinham decisões favoráveis em sentido contrário transitadas em julgado.
Venceu, no caso, o argumento da concorrência desleal, pois estava na mesa a discussão acerca de algumas grandes empresas que tinham em seu favor decisões transitadas em julgado que consideraram a CSLL inconstitucional e não pagavam o tributo há muitos anos, tendo o STF, na Ação Direta de Constitucionalidade n. 15, julgada em 2007, entendido pela sua constitucionalidade produzindo “eficácia contra todos e efeito vinculante” (artigo 102, §2º, CF).
Entendemos que esse “ajuste” feito pelo julgamento para equilibrar a concorrência entre as empresas do mesmo ramo é aceitável e juridicamente se justifica. O que não encontra qualquer respaldo na doutrina e na própria jurisprudência até então existente é a não modulação dessa decisão, abrindo caminho para que os tributos até então inexigíveis sejam cobrados retroativamente.
Apenas a título informativo, votaram pela modulação dos efeitos os Ministros Edson Fachin (Relator), Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e o Ministro Nunes Marques, vencidos pelos votos dos demais.
Cabe registrar que a possibilidade de modulação dos efeitos das decisões judiciais foi inserida no texto do Código de Processo Civil de 2015, no art. 927, §3º, justamente para garantir a segurança jurídica: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.”
O julgamento era, sem dúvida, uma hipótese ímpar de necessidade da modulação dos seus efeitos, o que não ocorreu, pegando todos aqueles que militam no meio jurídico de surpresa, pois a modulação já era dada como certa.
Cabe aqui fazer um registro de um vídeo amplamente divulgado que mostra o Min. Roberto Barroso, na tentativa de ilustrar o que foi julgado, afirmando que:
“A partir de 2007, quem não pagou fez uma aposta. As empresas, como regra geral, se eu fosse um empresário, as empresas certamente deveriam estar provisionando ou depositando esse dinheiro enquanto não se esclarecia. Quem não se preparou, fez uma aposta no escuro sem estar calçado e aí, enfim, a gente assume os riscos das decisões que toma”.
Ouso discordar da fala do Ministro simplesmente pelo fato de que desde sempre – e nunca havia se decidido em contrário nos Tribunais brasileiros – a coisa julgada foi considerada imutável (após o prazo de 2 anos da ação rescisória, limitada a raras hipóteses) e sempre protegeu seu beneficiário. Portanto, não se pode afirmar que o empresário fez uma aposta.
O empresário continuou não pagando o tributo porque estava amparado em uma decisão judicial transitada em julgado, que SEMPRE protegeu o jurisdicionado, estando garantida, inclusive, pela Constituição Federal (art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada). Houve, sim, uma mudança drástica nas regras do jogo que pretendem aplicar de forma retroativa, demonstrando pouca preocupação com as consequências dessa decisão para as empresas, responsáveis pelo sustento do país.
O momento é de total insegurança jurídica, criada pela não modulação dos efeitos da decisão, cujos argumentos anseio ter acesso para poder entender o que motivou aqueles que votaram nesse sentido.
Contudo, tenhamos calma. A decisão ainda não foi publicada, cabem embargos de declaração, recurso que pode ter efeitos modificativos. Enfim, tem muita água para rolar por debaixo dessa ponte. Talvez os impactos negativos da decisão – já apontados pelo Min. Luiz Fux como “risco sistêmico absurdo” – tendem a ser amenizados em um futuro próximo. Seguiremos vigilantes.